Justiça restaurativa e o caso boate Kiss

 

Justiça restaurativa e o caso boate Kiss

    Hoje vou escrever não como advogada, mas como ex-estudante da Universidade Federal de Santa Maria, ex-moradora de Santa Maria-RS na época da tragédia da boate Kiss e atual mestranda em direitos humanos. Digo isso em razão da delicadeza do tema e também porque, como advogada, o direito penal não está dentre as minhas especialidades, tampouco nos temas mais corriqueiros. No entanto, nos demais aspectos, acompanhando um pouco, durante a semana, o julgamento do caso “boate Kiss”, impossível não voltar os olhos para essa complexa área jurídica e pensar, um pouco, sobre justiça restaurativa.

    É fato que o caso da boate Kiss repercutiu no mundo todo. Porém, penso eu, somente quem residia em Santa Maria-RS na época da tragédia consegue compreender, realmente, um pouco melhor o que aconteceu e ter empatia com as vítimas e acusados. Ou, no caso dos acusados, empatia mesclada ao ódio, em razão de condutas apontadas como negligentes e da inimaginável dor das famílias e vítimas.

Certamente, ninguém duvida que existem culpados e que se deve buscar “justiça”. As famílias e as vítimas merecem isso. Existiram equívocos, é fato. Basta ver qualquer reportagem para perceber que se tratava de uma “tragédia anunciada”. Contudo, a sucessão de erros que culminaram em um massacre sem precedentes denotam o despreparo não de uma ou duas pessoas, mas de TODA uma cidade. Cidade essa que, diga-se de passagem, é chamada de “universitária” e, portanto, a própria formadora da maioria de seus profissionais. E não só isso, uma cidade que vive da vida estudantil, que “respira” estudantes. Quem conhece Santa Maria-RS bem sabe.

Apenas para citar alguns dos erros apontados como causadores ou agravantes do fato: falta de clareza sobre a responsabilidade da fiscalização das normas de incêndio, falta de orientação por alguns profissionais, falta de equipamentos no dia da tragédia, enfim… Li em uma reportagem que até mesmo a ausência de manifestação dos bombeiros em um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre os proprietários da boate e o Ministério Público teria contribuído com a situação.

Agora, passados alguns anos, é fácil dizer que era tudo tão óbvio. Entretanto, à época, e sobretudo para quem morava em Santa Maria-RS e frequentava/fiscalizava/gerenciava     QUALQUER boate, não era. É difícil dizer isso diante de tamanho sofrimento, mas não sejamos hipócritas. Basta olhar para a quantidade de pessoas direta ou indiretamente acusadas de serem responsáveis pelo ocorrido, aliado ao contexto de Santa Maria-RS para perceber o quanto é difícil dizer que alguém agiu com dolo de causar tantos danos. Respeito quem pensa diferente, mas particularmente, não consigo enxergar.

E não estou aqui questionando as reivindicações das famílias. Pelo contrário, o apelo por uma condenação mais grave é mais do que compreensível diante dessa situação. Porém, a pergunta que me faço é: de que forma o Estado, através do direito penal, especialmente do Tribunal do Júri e da aplicação de uma pena contribuem nisso tudo? Pergunto-me se, caso os acusados sejam condenados pela maior das penas, passem a vida na prisão, o que isso refletirá na dor das famílias e de todo um estado?

Diante disso, impossível não pensar que, talvez, especialmente nesse caso, uma justiça restaurativa seria o único caminho possível. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, a justiça restaurativa busca solucionar conflitos e violência a partir de atitudes criativas e sensíveis, de escuta dos ofensores e vítimas. Ou seja, pensar além “processo - pena”. É uma justiça que busca “restaurar”, ou seja, colocar as partes em uma condição melhor, buscando amenizar os danos.

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